#2 - lugares, rostos e memórias
sobre a dificuldade e a (des)importância do "manter contato", sobre a importância dos espaços na memória
Tratava aqueles espaços como possíveis caminhos para a lembrança de tempos de outrora, de pores e nasceres do sol, de caminhos a serem traçados. Não lembrava com quem havia dividido os lugares, mas o saber de tê-los dividido com outrem trazia uma familiaridade instantânea, um conforto quase doméstico para um lugar tão comum quanto um restaurante de beira de estrada ou banco de madeira num parque qualquer.
Às vezes tentava lembrar das pessoas - ou pessoa, no singular - com quem costumava habitar aqueles locais, ou com quem faziam tornarem-se especiais os mais fugidios lugares de passagem. Embora conseguisse, sem muita dificuldade, lembrar de rostos e nomes, não lembrava de nada além da superfície, os gostos e personalidades e o que esses rostos costumavam significar para si pareciam escondidos num lugar distante da memória. Talvez não importe mais, mesmo.
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Where are your friends tonight?1
Há umas três semanas eu li um quadrinho escolhido quase de maneira aleatória, buscando aquelas listas de “ótimas graphic novels que você precisa ler”, porque fazia tempos que eu não lia uma graphic novel, e essa me chamou a atenção por ser uma das únicas constantes contemporâneas do gênero terror nessas listas, por todo o mistério envolvendo a narrativa, … e porque o Damon Lindelof (Lost, Leftovers) chamou de melhor livro do ano, em 2022: The Nice House on the Lake.
Não vou discutir (muito) sobre a qualidade do quadrinho em questão, que eu sinceramente não recomendaria. Terminei a leitura com um gosto muito azedo pela falta de finalidade e pelo total abandono com o qual o autor parece tratar seus personagens. Não recomendaria mesmo, e poderia discorrer do porquê por alguns muitos parágrafos, mas não é sobre isso que quero falar, quero falar sobre um acerto bastante específico (e, talvez, minúsculo) da obra.
A história é que um grupo de pessoas, todas conectadas por um amigo em comum, chamado Walter, se encontra por convite deste amigo numa casa milionária à beira de um lago paradisíaco. Walter não é o único conhecido de cada um ali, porém: os personagens podem ser divididos em núcleos, há um núcleo de amigos do colégio e um núcleo de amigos da universidade. Os personagens dos dois núcleos também já se conhecem, por razão ou outra. Há, porém, uma personagem, Ryan, que destoa dessa homogeneidade. Ela é quase como uma forasteira, e embora seja conhecida de algumas poucas pessoas de ambos os grupos, não há intimidade nas suas relações. Sua ligação com o pessoal é muito menos significativa, muito mais rasa. Ela é, também, a convidada que conhece Walter há menos tempo.
O livro é dividido em um capítulo para cada uma das pessoas na casa, os capítulos geralmente iniciam com flashbacks que demonstram a vivência dessas personagens, suas interações umas com as outras, sempre com Walter fazendo parte, de alguma maneira, dessas memórias e dessas conexões. Walter sempre foi o alicerce destes grupos, a pessoa com a qual se podia contar, aquele que manteve todos juntos e conseguiu evitar a perda de contato, o deterioramento e o esvanecer das relações que tão comumente acompanha a passagem dos meses, dos anos, das décadas.
Nessa configuração, esse pessoal vai se reencontrar e interagir por um período muito curto (eles passam menos de 12 horas na casa até descobrirem a grande revelação da narrativa) antes de descobrir que o mundo todo fora dos limites da casa no lago foi destruído, que o que restou da humanidade está naquela casa, e que Walter, o grande amigo que acompanhou essas pessoas durante a maior parte de suas vidas, é na verdade um alienígena que precisava selecionar alguns humanos para que fossem estudados após o fim. A revelação é tão exagerada e brusca quanto a minha descrição nesse texto, e os quadros em que Ryan recebe a notícia são uma das minhas coisas favoritas no quadrinho relacionadas ao apocalipse e à distopia - e, infelizmente, não acabam dando em muita coisa, o conceito é bom, a execução não é das melhores.
O problema - e, também, a melhor parte do quadrinho - é que a obra só funciona mesmo nas partes mais humanas, nas poucas páginas de cada capítulo direcionadas à relação dessas personagens, nessa dicotomia entre o presente das suas relações e seus passados. No presente, há certo estranhamento comum em reencontros com pessoas que, embora sejam conhecidas durante toda uma vida, ainda parecem estranhas, num primeiro momento, porque sua relação passa, com o tempo, a se basear mesmo nisso: nos reencontros. Mesmo com aqueles com quem se havia um cotidiano, mesmo quando esse cotidiano tomou parte de mais de um terço das suas vidas, a relação baseada no reencontro esporádico carrega consigo uma superficialidade que não existe em encontros e conversas banais, cotidianas. As personagens do quadrinho, então, precisam lidar com o saber de que passarão o resto das vidas apenas com essas pessoas que, embora amadas, eram contatadas de maneira esparsa.
O diálogo entre o presente, com relações já moldadas pelos anos, e os flashbacks do início dessas relações, onde os elos de amizade e de relacionamentos trazem consigo uma constante desatenção - como devem ser as melhores relações - às possibilidades e tribulações do futuro, não é, infelizmente, o foco da graphic novel, e muito do que eu escrevi é quase que uma nota de rodapé para toda ficção científica (barata) e horror distópico, esses sim centrais à narrativa. Mas, mesmo sendo uma nota de rodapé, já consegue, por si só, tecer comentários sobre a dificuldade do se manter contato com o passar do tempo.
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Mas o que acontece quando as outras pessoas não importam tanto quanto o período ou o lugar em que foram conhecidas? Aquelas questões constantes entre pessoas próximas, ou até em monólogo, que norteiam toda uma viagem pelos espaços da memória: “Você lembra daquela pessoa…? Qual era mesmo o nome…”. Quando muito, essas incógnitas permitem a lembrança de um rosto, de uma experiência, de um caminho até um esboço de memória nunca concreta o bastante.
Há, então, uma vivência pela memória do outro, e pelo tentar lembrar (solitário ou não). Alguém com quem você fez uma viagem lembra de alguma figura específica que não importaria sem que ambos tivessem uma experiência com esse terceiro. Saudade talvez não seja a palavra para descrever essa pessoa perdida na memória, mas, a partir dessa personagem muitas vezes sem rosto, sem nome e sem características, abre-se todo um mundo de situações e principalmente lugares, que acabam podendo se tornar mais importantes do que aqueles com quem se preencheu aqueles espaços: a beleza e a fugacidade das relações se tornando como um papel de parede para essas experiências e para esses espaços, que acabam sendo, sim, eternos na memória. E, a incógnita inicial acaba, também, tomando as características espaciais como características subjetivas, firmando-se na lembrança como alguém que auxiliou no desenho desse cenário.
Os nomes não raramente se tornam menos importantes do que os lugares onde foram ditos. Mas, paradoxalmente, também guardam seu valor por permitir que o lugar comum se torne, de alguma maneira - o porquê não importa -, especial. O que define esse valor, esse equilíbrio, é sempre a passagem do tempo. Nomes passam a importar menos quando não se há contato por anos, décadas. Os espaços, e as experiências nestes, porém, se mantém.
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Enquanto pensava sobre toda essa ideia do manter contato, reli o primeiro e o último capítulo de um livro que gosto bastante: “A Visita Cruel do Tempo”, de Jennifer Egan. O livro - cujo título é autoexplicativo - é como um grande caleidoscópio onde o salto de um capítulo para o outro traz uma sensação parecida com o movimento dos fragmentos de vidro no tubo. Cada capítulo traz um ponto de vista diferente, uma personagem diferente, um momento diferente no tempo, um local diferente. A subjetividade destas personagens e os contrastes temporais e espaciais de cada capítulo poderiam confundir, mas acabam criando um panorama que, mesmo sem trazer muita lógica em sua cronologia - como se alguém estivesse tentando tecer uma linha em suas memórias e estas fossem constantemente sobrepujadas por outras mais ou menos importantes -, acaba evocando um holismo muito bonito em que cada personagem parece dialogar com o outro e externalizar sua subjetividade, mesmo que o encontro entre as personagens só venha a acontecer depois de centenas de páginas ou, mesmo, não aconteça em momento algum.
No primeiro capítulo conhecemos Sasha, uma das protagonistas da história, que discursa, no divã de seu terapeuta, sobre um primeiro encontro que teve com um rapaz que havia acabado de se mudar para Nova Iorque, cidade onde, naquele momento do livro, Sasha já reside há muitos anos. Sasha já se sente não presa, mas como se seus planos de sair da cidade já tivessem sido postergados há tempo o bastante para que saiba que o fato de ainda residir em Nova Iorque não seja propriamente uma decisão, mas sim a consequência de sua inércia.
Ela diverge, nesse ponto, do homem com quem teve o encontro: Alex, que Sasha acha ter vinte oito anos, mas não tem certeza da idade indicada pelo mesmo no aplicativo de relacionamentos onde se conheceram - Sasha esconde a idade de seus desconhecidos e de seus pares, indica que tem 28 em todas as suas redes sociais, quando na verdade tem 35 anos. Alex acabou de chegar em Nova Iorque, e esse deve ser algum dos seus primeiros encontros na cidade. O primeiro capítulo do livro acaba com Sasha furtando um pedaço de papel da carteira de Alex - Sasha tem cleptomania, e tenta lidar com essa condição durante todo o livro -, e com seu terapeuta questionando se ela devolveu, ou mesmo cogitou mencionar o roubo do papel para Alex. Sasha responde que não viu mais Alex depois do primeiro e único encontro, e suplica para que o seu terapeuta não pergunte como ela está se sentindo sobre o furto, já que se sente culpada e busca melhorar, mesmo sem ter certeza do caminho para tal.
Alguns muitos anos depois, no último capítulo do livro, Alex, agora com seus trinta e poucos anos, trabalha para o mesmo homem para quem Sasha trabalhava na época do primeiro e derradeiro encontro entre os dois, Bennie, e pensa da garota por lembrar ter sido ela quem, pela primeira vez, mencionou o nome do seu agora chefe. Por algum motivo há a lembrança de algo muito específico da noite do encontro: uma carteira. Alex não consegue lembrar nem do nome da garota com quem saiu, nem de seu rosto. Lembra-se apenas do inverno, da escuridão, de uma banheira e da imagem da carteira.
“Era como tentar lembrar de uma musica que você sabia ter o poder de provocar uma determinada sensação, mas sem nenhum título, artista, ou mesmo alguns compassos para traze-la de volta. A garota paira logo além do limite do alcance da sua mente, e havia deixado a carteira no cérebro de Alex como fosse um cartão de visita, para provocá-lo.”
Alex passa boa parte do último capítulo sem lembrar do nome da garota. E, quando lembra, depois de um acontecimento bastante catártico do fim do livro, pergunta para seu chefe, enquanto caminham pelas ruas de Nova Iorque à noite, quais suas lembranças sobre ela. Bennie reflete, por alguns instantes, e fala que ela havia sido muito importante não só para a empresa, mas também para ele, “como se fizesse parte de três quartos de sua cabeça”, na época. Diz que foi demitida, em razão da cleptomania. Alex lembra, então, do desespero de uma mulher na noite do seu encontro com Sasha. Havia perdido sua carteira, e precisava de ajuda. A busca, depois de alguns minutos desesperadores, havia terminado sem grande cerimônia, com a mulher encontrando sua carteira no primeiro lugar onde havia procurado, o banheiro do restaurante. Alex lembra de ter uma opinião negativa sobre a mulher, após o ocorrido, já que pareceu para ele, na época, que ela apenas tentava chamar atenção. Nunca soube, em todos estes anos, que a carteira havia sido furtada por Sasha, que, num movimento de rara lucidez, havia conseguido devolvê-la antes de irem embora, e, por um ato de bondade da mulher, conseguido manter esse segredo.
Era um daqueles dias em que cada cruzamento de rua revela um rosto conhecido, velhos amigos, amigos de amigos […]. Desde o dia em que chegara em Nova York, aos 24 anos, [Alex] sentia-se prestes a abandonar a cidade, […] mas, de alguma forma, uma quantidade suficiente de anos havia transcorrido para lhe dar a sensação de que já tinha visto cada habitante de Manhattan pelo menos uma vez na vida. Imaginou se Sasha estaria em algum lugar daquela multidão.
Sasha, no primeiro capítulo, explica para o terapeuta a euforia que sentiu após o furto, e o quanto aquele momento de cumplicidade secreta entre os dois, ela e Alex - mesmo que só ela soubesse, de fato, do ato - parecia importar. Após, porém, a noite teria sido fria e tediosa, só mais uma entre várias outras. Alex e Sasha, então, tem duas razões bastante diferentes para que uma carteira seja a imagem chave desse encontro, tantos anos depois.
O ex-chefe de Sasha, agora chefe de Alex, lamenta não saber o que aconteceu com a ex-funcionária, ele lembra, porém, qual era o seu apartamento. “É aquele ali”, Bennie aponta, e as memórias da noite, do espaçoso apartamento que contava com uma grande banheira, exclusividade de apartamentos antigos, voltam à memória de Alex: “como um dèjá-vu, como se estivesse retornando a um lugar que não existisse mais”. Bennie ainda lembra do número do apartamento, eles apertam o interfone e esperam, como se quem fosse atender não fosse uma velha conhecida dos dois, mas sim alguém que pudesse consertar todos os erros dos últimos anos, como se Nova Iorque fosse abrir suas portas, pela primeira vez, novamente. Não que a vida de ambos não fosse satisfatória, mas há, nesse livro, uma sensação constante de perda, como se cada experiência fosse, de imediato, tomada por uma pontuação daquele momento, de que o tempo estava correndo e que as chances e oportunidades para novas experiências estivessem se tornando mais e mais ínfimas.
Ninguém abre a porta. A fantasia não se completa, a esperança se esvai. Resta o tempo presente: “Alex fechou os olhos e escutou: o portão de ferro de uma loja era abaixado. Os roucos latidos de um cão. Caminhões passavam nas pontes. A noite aveludada em seus ouvidos. E o zumbido, sempre aquele mesmo zumbido, que talvez, no final das contas, não fosse um eco, mas sim o barulho do tempo que passa”.
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Em Disco Elysium (jogo de RPG de 2019, que é tão literário quanto qualquer grande romance), há uma mecânica chamada “Shivers”, que é basicamente um diálogo da cidade com o personagem. As interações com essa mecânica são algumas das mais melancólicas do jogo, e partem de um tempo que já passou e de como cada redor de cada esquina ainda lembra daqueles momentos por mais insignificantes que sejam, imprimindo uma subjetividade aos espaços físicos, quase como se a memória espacial pudesse responder com suas próprias memórias, descrevendo relações e situações cujas personagens não são tão importantes quanto suas ações, ou quanto alguma ideia já esvanecida de suas relações com os espaços onde essas ações aconteceram. As relações em si importam, são o ponto zero de todas essas memórias, mas com elas há a dificuldade de manter contato, o esquecimento desses alguéns, enquanto a memória de carteiras, de mobílias, de esquinas e apartamentos, se mantém.
A visita cruel do tempo já foi um dos meus livros favoritos, hoje, quatro anos depois, ainda guarda uma marca potente de seus melhores momentos - vide esse texto, que partiu de uma lembrança de como me senti sobre esses exatos dois capítulos quando os li em 2020. Não acho que seja perfeito, não acho que ainda seja um dos meus livros favoritos, mas no seu auge e nessa relação caleidoscópica entre os diversos pontos nas vidas e nos encontros e desencontros dessas personagens e suas histórias, descreve a dificuldade do manter contato, a importância dos lugares e dos espaços para as memórias, e como às vezes os arrepios da cidade falam mais alto do que qualquer velha companhia, e evocam lembranças de maneira mais concreta e tátil de pessoas queridas do que a memória propriamente dita de antigos conhecidos dos quais se resta pouco mais do que um nome ou um rosto.
Ouvi a música “All My Friends” do LCD Soundsystem em repeat enquanto escrevia boa parte desse texto.